quarta-feira, 12 de maio de 2010

A SECULARIZAÇÃO DA CULPA NO DIREITO DE FAMÍLIA

PEDRO WELTER
Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, Mestre em Direito Público
pela UNISINOS, Professor de Direito de Família na URI (Santo Ângelo)

SUMÁRIO: 1) doutrina sobre o dano moral no casamento e na união estável; 2) jurisprudência acerca do dano moral no casamento e na união estável; 3) a secularização da culpa no Direito de Família; 4) bibliografia.

Questão relevante e que merece maiores esclarecimentos é a referente à possibilidade de ser discutida a culpa no Direito de Família e, em decorrência, a propositura das ações de separação judicial litigiosa, por infração aos deveres do casamento, dissolução da união estável, indenização por dano moral, na perda do nome de casado, na fixação dos alimentos, na reversão dos bens e da meação ao cônjuge enfermo, que não houver pedido a separação judicial, e, estranhamente, para fins de concessão do direito de herança ao cônjuge e ao companheiro.

Por um lado, a pesquisa tem a finalidade de desmistificar a culpa e, em conseqüência, o denominado dano moral no casamento e na união estável, invocando, para tanto, o princípio da secularização. Por outro ângulo, e não incidindo em paradoxo, serão descritas as hipóteses que acarretam a indenização por dano moral nessas entidades familiares.

1 DOUTRINA SOBRE O DANO MORAL NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

No cenário jurídico brasileiro ocorrem manifestações favoráveis2 à indenização por danos sofridos pelo cônjuge inocente, por infração aos deveres do casamento e da união estável3. Contudo, não se trata de matéria nova e pacífica, tanto na doutrina quanto na jurisprudência4.

De um modo geral, o que se tem visto na doutrina, deve ser indenizado o dano moral na constância do casamento e da união estável, nos casos de crimes de homicídio, contra a honra, lesões corporais5; contaminação pelo vírus da AIDS6; falta do dever de assistência material, tentativa de morte, injúrias graves7; lesão deformante, abandono injustificado da família, adultério, maus tratos, transmissão de doença venérea8; incapacidade física9; negligência ao estado de saúde da mulher, permite que ela desenvolva moléstia10; sevícias, difamação e injúria11.

Examinando esses exemplos, em que se requer o ressarcimento dos danos morais, percebe-se que, em todos os casos, a alegada infração aos deveres do casamento e da união estável (artigos 1.566 e 1.724 do CC), além de se constituírem em causas da ruptura dessas entidades familiares (artigo 1.572 do CC), são condutas delituosas. É dizer, o dano que se reclama não é, na verdade, devido à desobediência aos deveres conjugais, mas, sim, porque tipificam conduta delituosa a um dos cônjuges ou companheiros. E esse dano material e moral à incolumidade física não se indeniza pela singela razão de ter ocorrido na constância do casamento ou da união estável, visto que, mesmo fora dessas entidades familiares, estará justificada a indenização pelo ato ilícito delituoso12.

2 JURISPRUDÊNCIA ACERCA DO DANO MORAL NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL

Na jurisprudência, em praticamente todos os julgados consultados, em que se concedeu a indenização de dano moral no casamento e na união estável, foi devido à ocorrência de ilícito penal, e não só devido à infração aos deveres constantes dos artigos 1.566 e 1.724 do CC. Alguns exemplos podem ser citados:

a) Em julgamento no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 1981, foi decidido que é cabível a indenização de dano moral quando o marido espanca a esposa, bárbara e violentamente, chegando a fraturar-lhe um braço13. Há, assim, a presença não apenas de infração aos deveres matrimoniais, como de ilícito penal, como causa da indenização.

b) Em outro acórdão do mesmo Tribunal14 não foi concedida a indenização do dano moral, tendo em vista que “a quebra de um dos deveres inerentes à união estável, a fidelidade, não gera o dever de indenizar, nem a quem o quebra, um dos conviventes, e menos ainda a um terceiro, que não integra o contrato existente e que é, em relação a este, parte alheia”. Vê-se que, embora o adultério seja crime (artigo 240 do CP), a tendência doutrinária15 e jurisprudencial16 é pela sua de despenalização. Não obstante a descriminalização do adultério, a conduta do cônjuge ou companheiro pode tipificar o crime de injúria17, a ensejar, então, a reparação por danos morais, mas não porque infringiu os deveres do casamento, e sim porque cometeu ilícito penal que, em tese, deve ser indenizado.

c) O Superior Tribunal de Justiça18 conferiu indenização por danos morais na constância do casamento, tendo em vista que “a separação litigiosa requerida pela mulher baseou-se na insuportabilidade da vida em comum, adjetivado o comportamento do marido como violento, irascível, tirânico, autoritário e ameaçador, proclamando ela seu fundado temor de ver-se objeto de violências físicas, além das psíquicas”. Aqui, novamente, o pedido de indenização não foi acolhido devido à infração dos deveres do matrimônio, mas, sim, porque o ex-marido cometeu o crime de ameaça e lesão corporal.

d) Dois acórdãos são citados pela doutrina19, oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo, em que houve a concessão de indenização de dano moral na constância do casamento, em decorrência do contágio do cônjuge pelo vírus da AIDS e ao abandono da cônjuge que estava grávida e perdeu o emprego, abortando voluntariamente. Esses dois casos, da mesma forma, comprovam que não houve tão-só infração aos deveres do casamento, mas conduta delituosa (artigo 121, c/c artigo 14, II, tentativa de homicídio pela transmissão do vírus da AIDS, artigo 125, aborto, e artigo 244, abandono material, todos do Código Penal).

e) No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ementa de acórdão foi edificada nos seguintes termos20: “Lesões corporais causadas pelo marido à própria esposa, deixando-a inabilitada para as funções profissionais de advogada”. Outra vez, presente a conduta criminosa a ensejar a indenização por dano moral.

f) Outro julgado é citado pela doutrina21, em que se concedeu o direito à indenização por dano moral, tendo em vista as sevícias e a injúria grave praticados por um cônjuge contra o outro. Está-se, mais uma vez, frente a uma conduta delituosa.

Vê-se que, em todas as hipóteses acima citadas, a doutrina e a jurisprudência admitem a indenização de dano moral no casamento e na união estável não em razão da infração aos deveres matrimoniais, mas, principalmente, em vista do cometimento de ilícito penal de um cônjuge ou convivente contra o outro. Dessa forma, a indenização é concedida não devido à ruptura da sociedade conjugal ou da entidade familiar, por infração aos deveres do casamento ou da união estável, mas, sim, porque o cônjuge ou companheiro culpado cometeu ilícito penal contra o seu consorte, que, em tese, deve ser indenizado.

É por isso que outra ala da doutrina22 contesta a indenização por dano moral no casamento e na união estável, pois seria o término da paixão, do amor, da libido, da força do sexo, impondo puritanismo retrógrado. É dizer, numa só palavra, a indenização não é exigida pela ruptura do desejo de felicidade, e sim porque, quem tinha o dever de contribuir para a felicidade, retribuiu com conduta delituosa.

Na verdade, os pedidos de indenização por dano moral na constância do casamento e da união estável não são pelo prejuízo que os cônjuges ou companheiros sofreram “em nome do amor que acabou”23, e sim pela desumana e indigna conduta delituosa perpetrada contra o consorte, a quem, algum dia, jurou amar, sonhar e fazer feliz por toda a vida, na alegria, na dor, na (des)esperança, na velhice, na (in)felicidade, na tristeza, na (des)confiança, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando e respeitando um ao outro por todos os dias.

3 A SECULARIZAÇÃO DA CULPA NO DIREITO DE FAMÍLIA

Para melhor compreender a incidência, ou não, do dano moral no casamento e na união estável, é necessário volver ao Direito Romano, ao Direito Canônico e à origem do Estado de Direito.

A Igreja Católica, por meio do Direito Canônico, há vários séculos, instituiu a noção de culpa no casamento, em vista do cometimento do pecado original por Adão e Eva, que foram expulsos do paraíso, absorvendo a mácula do pecado. O casamento, para a Igreja, é eterno, um sacramento, portanto indissolúvel, não sendo tolerada, em decorrência, a separação do casal. O divórcio canônico era admitido em raríssimos casos, como adultério, abandono ou sevícias, isto é, quando do cometimento de ilícito penal. Em decorrência desse Direito Eclesiástico, surge o chamado princípio da culpa, como forma de manter edificado o casamento, que somente poderia ser desfeito mediante a comprovação de um culpado, que deveria ser punido24.

Noticia, Jeanine Nicolazzi Philippi25, que, em Roma, a religião significava estar ligado ao passado, que devia ser preservado, santificado e cultuado, inclusive pelas leis que eram elaboradas de acordo com os costumes dos antepassados. Todavia, com o transcorrer dos anos, os romanos começaram a questionar-se sobre a origens das leis. Dizia-se que era conseqüência de um saber racional, destinado a solucionar os conflitos, mas, por outro lado, era afirmado que a lei provinha de um lugar mítico, explicada e sustentada por intermédio da figura do Autor, de uma crença no Pai.

A partir dessa crença no Pai, as leis concretas da civitas permaneceram em segundo plano, pois a revelação divina surge como a única expressão capaz de ditar uma ordem eterna e válida para todos. O enfraquecimento da autoridade moral, política e intelectual da civilização romana cede espaço para o cristianismo que, pretendendo tornar-se religião universal, se apresenta, num primeiro momento, com princípios morais próprios, reforçando a idéia de um direito natural divino e, num segundo momento, vai representar uma possibilidade de justificação do poder e do sistema jurídico.

Com o desmembramento do Império Romano, em Ocidente e Oriente, a contar do século V, e com o decorrente desaparecimento de uma ordem secular estável, há um deslocamento de autoridade e poder de Roma ao Chefe da Igreja Católica Romana. Esta, por sua vez, desenvolveu um direito canônico, estruturado num “conjunto normativo dualista - laico e religioso - que irá se manter até o século XX”. Como conseqüência, nas Idades Antiga e Medieval, o Direito, confundido com a Justiça, era ditado pela Igreja, que, possuindo autoridade e poder, se dizia “intérprete de Deus na terra”26. A justificação desse poder de dizer o justo fundava-se na natureza física e social, tidas como obra da criação divina.

Nos primórdios da Idade Moderna, prossegue a autora, surge nova concepção epistemológica, descristianizando a teoria naturalista. Foram expoentes dessa mudança Hugo Grócio, seguido por Locke, Robbes, Rousseau, Kant, entre outros jurisconsultos. E esse renascimento representou a laicização, que formatou uma mudança de pensamento e de paradigma, transformando a concepção do Direito e do Estado. Desse (re)nascer do Direito e do Estado puderam ser constatadas quatro Revoluções: a) a revolução econômica, por meio do capitalismo mercantil, do comércio, da manufatura e das cidades; b) a revolução política, que trouxe o fim do Estado Teocrático, ou seja, a partir de então, o poder não era mais de “Deus”, e sim do Estado de Direito; c) a revolução do conhecimento, que representou o rompimento com o pensamento religioso (a Igreja justificava o direito com base no direito divino); d) a revolução cultural, que incluiu a família, o indivíduo e a criança como parte e base da sociedade.

Durante o período da secularização (laicização)27, os contratualistas John Locke, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rosseau, entre outros, pela teoria do contrato social (século XVII), sustentaram que o direito continua sendo um dado da natureza (e não das alturas, divino), mas, para que as leis se tornassem normas positivas, haveria necessidade do consentimento do indivíduo. A humanidade, que se encontrava no estado da natureza, sem qualquer regra de convivência social, firmou um contrato social, surgindo, então, o Estado de Direito, uma criação artificial da razão humana, que passa a ditar as leis positivas, acarretando o fim do Estado Natural e o início do Estado Social e Político.

O princípio da secularização, de acordo com Luigi Ferrajoli28, é a idéia de que inexiste uma conexão entre o direito e a moral. O direito não tem a missão de (re)produzir os elementos da moral ou de outro sistema metajurídico de valores éticos-políticos, mas, tão-somente, o de informar o seu produto de convenções legais não predeterminado ontológico nem tampouco axiologicamente. Mas, por outro lado, salienta o constitucionalista, se edificada a mesma idéia de forma contrária, denota a autonomia da moral com relação ao direito positivo, isto é, “os preceitos e os juízos morais, com base nesta concepção, não se fundamentam no direito nem em outros sistemas de normas positivas - religiosas, sociais ou de qualquer outro modo objetivas -, senão somente na autonomia da consciência individual”. Essas são, segundo o jurista, as duas teses que constituyem uma adquisición básica de la cultura liberal. Y reflejan el proceso de secularización, culminado al inicio de la Edad Moderna, tanto del derecho como de la moral, desvinculándose ambos em tanto que esferas distintas y separadas de cualquer nexo com supuestas ontologías de los valores29.

Ressaltam, Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho30, que a secularização (laicização) é a ruptura entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas, especialmente entre a moral do clero e a forma de produção da ciência. Por isso, o Estado não deve se imiscuir coercitivamente na vida moral dos cidadãos e nem tampouco promover coativamente sua moralidade, mas apenas tutelar sua segurança, impedindo que se lesem uns aos outros. Com o princípio da secularização, concluem os articulistas, podem ser invocados inúmeros (sub)princípios: da inviolabilidade da intimidade e do respeito à vida privada (art. 5º, X), do resguardo da liberdade de manifestação de pensamento (art. 5º, IV), da liberdade de consciência e crença religiosa (art. 5º, VI), da liberdade de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII) e da garantia de livre manifestação do pensar (art. 5º, IX).

Com efeito, o princípio da secularização fez corte vertical entre a moral eclesiástica e o Direito, pelo que, parafraseando o jurista italiano Luigi Ferrajoli, os preceitos e os juízos morais não têm lastro no Direito, mas, tão-só, na liberdade da consciência individual31. A moral, a contar da separação entre a Igreja e o Estado, não é mais um mandato das alturas, não é mais sacra, e sim profana. Esse princípio da liberdade da consciência individual traduz-se no princípio da liberdade de entrar e sair do casamento e da união estável, representando o esteio, o pilar, a âncora da democracia32, que não existe sem dignidade33. É dizer, o cônjuge e o convivente têm a liberdade de entrar e de sair do casamento e da união estável quando melhor lhe aprouver, sem que a sua conduta importe violação à moral do consorte. Perante as leis da Igreja pode ser até imoral alguém sair, de uma hora para outra, do recanto familiar. No entanto, se não abandonar a família material, intelectual e moralmente, não estará cometendo qualquer conduta delituosa, pelo que descabe qualquer indenização ante a sua opção de separar-se, de libertar-se do jugo, ante a falência do amor, da felicidade e do afeto, principais elementos da unidade familiar.

Com a laicização dos Estados e do Direito Estatal, o Direito Canônico tornou-se laico (leigo), afastado do Direito Estatal, não podendo ser juridicizado, porque, desde aquela época, compete ao Estado dizer o Direito, e não mais à Igreja. Dessa forma, a culpa, por ser parte do Direito Canônico, Divino, deve ser secularizada, laicizada, excluída do Direito Estatal.

É devido à longa, mas recente laicização do Direito e dos Estados (séculos XIV a XX) que o jurista tem dificuldade em seccionar o Direito Canônico do Direito Estatal. Ainda hoje o Direito Estatal sofre influência de ordem secular, canônica, divina, como a inserção da culpa na separação judicial e na dissolução da união estável (artigo 1.572 do Código Civil), na fixação dos alimentos (artigos 1.694, parágrafo 2º, 1.702, 1.704, e parágrafo único, do Código Civil), na perda do nome de casado (artigo 1.578 do Código Civil) e na reversão dos bens e da meação ao cônjuge enfermo, que não houver pedido a separação judicial, nos casos permitidos pelo regime de bens (artigo 1.572, parágrafo 3º, do Código Civil) e, estranhamente, inclusive para fins de concessão do direito de herança ao cônjuge e companheiro (art. 1.830 do Código Civil)34. E isso ocorre porque, para a Igreja, o casamento é indissolúvel, é um sacramento, é eterno (até que a morte os separe), aplicando-se, portanto, o princípio da sacralização. E a indissolubilidade do casamento faz com que o jurista defenda a discussão da culpa no Direito de Família, como se o Direito eclesiástico, que prega a culpa no âmbito familiar, ainda tivesse influência no Direito Positivo35.

Nesse sentido, há um paradoxo, porque, de um lado, o legislador brasileiro aceitou a laicização do Direito Estatal, ao introduzir o divórcio no País, em 1977, após longos anos de discussão e resistência da Igreja, afastando o princípio da indissolubilidade do casamento. Além disso, a culpa foi secularizada, laicizada, descristianizada, profanada, dessacralizada, desconsagrada e desdramatizada pelo Direito do Estado, ao permitir, por exemplo, a guarda de filho pelo cônjuge ou companheiro responsável pela dissolução da entidade familiar (artigo 1.584 do Código Civil). Contudo, por outro lado, não é aceita a laicização, a abolição, a extinção da culpa na dissolução das entidades familiares na fixação dos alimentos, na adoção do nome de casado(a), na dissolução da sociedade conjugal ou da união estável e na perda dos bens e da meação ao cônjuge enfermo, que não houver pedido a separação judicial.

Há mais: a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 extinguiram o princípio da sacralização do casamento, com a possibilidade de divórcio (artigo 226, parágrafo 6º, da Constituição Federal, e artigo 1.580, e parágrafo 2º, do Código Civil), com o reconhecimento de outras formas de constituição de família, como a união estável e a monoparentalidade (artigo 226, parágrafos 3º e 4º, da Constituição Federal, e artigo 1.723 e 1.597, IV, do Código Civil), a igualdade entre os cônjuges (artigo 226, parágrafo 5º, da Constituição Federal, e artigo 1.511 do Código Civil) e a igualdade entre os filhos havidos ou não do casamento e da união estável (artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal, e artigo 1.596 do Código Civil). É dizer, esse mesmo Estado, que é Democrático e de Direito, dessacralizou o casamento, mas não aceita a secularização da culpa em todas as áreas do Direito de Família. O Estado não se dá conta de que, ao manter a culpa no âmbito do Direito de Família, está, na verdade, aceitando, indevidamente, a imposição da doutrina do Direito Eclesiástico.

E o jurista, por sua vez, não deve incidir no mesmo equívoco do Estado - interpretar o Direito de Família com base no Direito da Igreja -, para que seja possível afastar a culpa não apenas em parte, mas em todo o Direito de Família. Em decorrência, a pretensa indenização por dano moral perderá o objeto, visto que pressupõe um culpado e um inocente na dissolução das entidades familiares36.

No Direito de Família, em vista dos princípios da secularização, da dessacralização do casamento, da liberdade, da igualdade, da prevalência dos interesses dos cônjuges e dos companheiros, da felicidade, da solidariedade, do afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, não se pode falar em culpa ou em responsabilidade civil37. A responsabilidade imposta no Direito de Família é apenas o “direito de ser feliz e o dever de fazer o outro feliz”38. O amor é uma estrada de mão dupla, na qual os cônjuges ou companheiros são responsáveis pelos seus atos e suas escolhas39, pelo que não se pode discutir a culpa40. No Direito de Família, não há responsabilidade civil, e sim a responsabilidade pessoal, em vista da liberdade de escolha do consorte, da situação em que o cônjuge ou companheiro se encontra, ao optar pela dissolução da entidade familiar, e pela saída desse conflito41, enfim, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna42.

Eventual lei de imposição de dano moral na dissolução da sociedade conjugal ou união estável seria inconstitucional, por duas razões: a primeira, as leis não têm o objetivo de abolir, e sim de preservar e ampliar a liberdade43, sob pena de incidir em retrocesso social, o que é inadmissível, segundo a doutrina44 e a jurisprudência45, e renunciar à liberdade é o mesmo que abdicar de um direito próprio da humanidade46; a segunda, essa lei ofenderia os princípios constitucionais da secularização, da prevalência dos interesses dos cônjuges e companheiros, da cidadania, do afeto, da solidariedade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, isso porque não se admite que uma regra, mesmo que em nível constitucional, possa contrariar princípios.

Destarte, o Estado de Direito laicizou, tornou leigo, secularizou, descristianizou, profanou, desconsagrou, degredou, dessacralizou, desdramatizou, enfim, extinguiu o princípio da culpa, pelo que, em um Estado Constitucional, deve-se compreender que a Constituição (ainda) constitui47, não se podendo admitir a discussão da culpa do Direito Canônico no âmbito do Direito de Família.

Porém, isso não significa que o dano moral deve ser afastado do Direito de Família, porquanto, se os consortes, na constância do casamento e da união estável, praticarem, entre si, ilícito penal, esse dano deve ser indenizado, não porque o fato ocorreu durante a entidade familiar, e sim devido ao delito penal que, em tese, deve ser indenizado48.

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